terça-feira, 19 de agosto de 2008

GATO NEGRO - cabernet sauvignon - valle de chile 2006


 

Estou de volta a essa casa de onde é tão complicado partir. Passei um tempo em Buenos Aires. Não gosto muito de contar detalhes sobre os dias. Ou prefiro esconder os meus dias em detalhes. Pequenos fragmentos que, se forem examinados com atenção, podem entregar a cena que eu prefiro esconder. Eu sempre preferi me revelar apenas aos que pretendem me descobrir. Escrever para aqueles que precisam ler. Falar aos que querem escutar.

É tão fácil me dar por vencido.

Agora toca Bob Dylan e é tão fácil me dar por vencido quando ele canta. Minha boca dói. Colocaram mais pinos dentro dela. Não sei quando a dor vai passar, então eu bebo. Eu nunca devia ter brigado como eu briguei. Eu nunca devia ter falado as coisas que eu falei. Agora toca To Ramona e eu sei que nada disso importa. A briga que tivemos. Os dentes que eu perdi. A cicatriz no meio da testa do seu rosto. Eu queria te conhecer quando me olho no espelho. Mas tem sido cada vez mais difícil te encontrar. Tem sido cada vez mais difícil encarar no espelho e não te encontrar do outro lado. Se um dia você voltar é quase certo que eu não saberei mais por onde te abraçar.

Passei uma semana caminhando por Buenos Aires. Ninguém sabia que nos cafés dos finais dos dias o meu coração tremia e eu sentia tão forte o medo de morrer. O medo de ir embora sem partir. O fantasma do meu avo esteve tão presente nesses dias em Buenos Aires. A isquemia sempre presente. O meu avô vegetando na cama. Os seus pensamentos que ninguém consegue precisar até onde chegam. As doenças sempre são hereditárias. É difícil suportar os dias sabendo que o pior talvez nos espere.

Eu queria conseguir entender pq é tão complicado fazer o que não é necessário. Eu queria talvez conseguir te contar uma historia desnecessária. Eu queria saber um pouco menos do que você precisa. Eu queria ter mais tempo de vida. Eu não queria ter perdido tanto tempo da minha vida. Eu queria saber quais foram as escolhas que me fizeram chegar tão atrasado até mim.

Mas hoje é uma terça-feira e nas terças-feiras é complicado fazer o mundo ter sentido.

Estou de volta à casa dos meus pais esperando que os parafusos sejam aceitos pela gengiva. Os parafusos maiores demoram um pouco para serem assimilados pela carne. Sempre que presto atenção no gosto da minha saliva eu sinto gosto de sangue e nós não devíamos ter brigado naquela noite. Eu devia ter perguntado o seu nome antes de responder o meu. Eu devia ter bebido dentro do meu quarto. É sempre mais seguro beber entre quatro paredes. Eu queria agora passar a língua dentro da minha boca e sentir os meus dentes todos sem nenhum faltando.

Mas agora tudo dói e o vinho arde. Por isso não vou abrir o Tannah que trouxe da argentina. Por isso toca Dylan. Ele entendia a sabedoria dos vinhos quando baratos. Eu entendo a dor dos dentes quando perdidos. A dor dos implantes quando rejeitados. A dor de não saber fazer tudo o que não seja necessário.

Por isso eu te entreguei os meus dentes. Para sentir nas gengivas o gosto metálico dos pinos.

2 comentários:

quasechuva disse...

te ligar ja

Alien disse...

ele escreveu que perdeu um dente.
eu escrevi pra ela perguntando se ela sabe o que aconteceu.
eu sei que o que ele escreve é ficção, mas eu sei que tudo que ele tece existe. denso, invisível e afiado.
eu achei traumático ter de extrair um dente, há décadas.
e tô marcando um raio X por causa do famoso dente do juízo.
foi na primeira extração dentária - há décadas, como é bom me sentir velha! - que senti como uma perda pode alterar um espaço.
foi mais tarde que eu descobri que toda perda inaugura uma multidão.

eu já perdi tanta coisa e já desisti de outra tantas, que às vezes eu me pego pensando se eu não desisti de mim mesma. às vezes eu me pego olhando pra trás para ver em que chuva eu me abandonei.

eu fico tentando cuidar do corpo e lutando contra o peso dos quilos e da vida a cada pouco, porque no dia em que eu voltar, eu quero reconhecer a minha própria casa.